Caetano Veloso chamou João Gilberto de bruxo de Juazeiro

Foto/Leo Aversa/Reprodução.

Muita gente não sabe que Caetano Veloso chamou João Gilberto de bruxo de Juazeiro na letra de uma música. Se estivesse vivo, o inventor da Bossa Nova teria completado 93 anos nesta segunda-feira, 10 de junho de 2024. Quando morreu, no dia seis de julho de 2019, estava com 88 anos.

O CD Abraçaço, que Caetano Veloso lançou em 2012, começa com uma música chamada A Bossa Nova é Foda. A faixa, com a pegada rocker da banda Cê e uma breve passagem bossanovista, traz uma bela homenagem à Bossa Nova, vista de longe pelo extraordinário letrista que Caetano é.

É delicioso, ainda que não seja tão simples, decifrar seus versos. O bruxo de Juazeiro é João Gilberto. O louro francês é André Midani, lendário executivo da indústria do disco que viveu no Brasil.

O Lyra do compositor Carlos Lyra é mencionado através da lira, “o magno instrumento grego antigo”, enquanto Quando Chegares e Influência do Jazz são músicas de sua autoria.

“O tom de tudo comanda as ondas do mar” é uma alusão a Tom Jobim, descrito como “homem cruel, destruidor, de brilho intenso, monumental”. Vinícius de Moraes é o poeta a quem Jobim deu a chave da casa de munição. “O velho transformou o mito das raças tristes”.

Já o bardo judeu romântico de Minnesota é Bob Dylan, que, em algum momento, também se inspirou na contenção vocal de João Gilberto.

João Gilberto, o tal bruxo de Juazeiro, ouviu Orlando Silva, os sambistas do Rio de Janeiro e os sambas de Dorival Caymmi. Ouviu também Chet Baker, estrela do cool jazz, artista de canto intimista que, para os americanos, está longe de ser tão importante quanto João é para nós, brasileiros. No início, muito antes da Bossa Nova, sua voz era como a dos cantores antigos, dizem os que o ouviram.

Em 1958, na gravação de Chega de Saudade, registro inaugural da bossa, está transformada: já tem a contenção que adotaria dali por diante, junto à originalíssima batida do violão. E tem o diálogo entre os dois elementos. Voz e violão, em avanços e recuos que embutiam uma revolução. A música brasileira depois de João atesta. O mundo todo reconhece.

“Lá fora, o mundo ainda se torce para encarar a equação” – assegura Caetano Veloso.

Há um intervalo entre o período em que João integrava um grupo vocal de samba e o instante em que participa, em duas faixas, do disco Canção do Amor Demais, de Elizeth Cardoso. Naquele intervalo, inventou a batida da bossa e adotou um jeito de cantar diferente de tudo o que se fazia no Brasil.

Com Elizeth, acompanha a intérprete, ao violão, em Chega de Saudade e Outra Vez. Mas falta a voz. E o casamento dela com o instrumento. É o que ouvimos, pouco depois, no 78 rpm que traz Chega de Saudade, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, arranjada por Tom.

A voz e o violão de João, elementos indissociáveis. Uma gravação de dois minutos. Um corte: o antes e o depois daquele disco.

Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo, Milton Nascimento, Roberto Carlos. Todos (e muitos outros) dirão onde estavam quando ouviram Chega de Saudade pela primeira vez. E falarão sobre o efeito devastador que aquela gravação teve na vida e na música deles.

A essência da invenção de João Gilberto está nos três discos que gravou na velha Odeon entre o final da década de 1950 e o início da de 1960. A releitura dos sambas anteriores à bossa, um pouco de Dorival Caymmi, algo de Ary Barroso e muito dos seus contemporâneos, sobretudo Antônio Carlos Jobim – é o que se ouve naqueles LPs, que não estão oficialmente disponíveis em CD por causa da briga judicial que, durante anos, o artista teve com a gravadora.

Ao LP Chega de Saudade, de 1959, seguiram-se mais dois discos: O Amor, o Sorriso e a Flor, de 1960, e João Gilberto, de 1961. Os três me parecem suficientes como tradução do que foi a Bossa Nova.

Seminais, formam um conjunto de excepcional beleza e grande unidade. São tão indissociáveis quanto a fusão da voz de João Gilberto com a batida do seu violão.

Violonista de formação erudita, Turíbio Santos conta que uma vez tentou tocar como João Gilberto, pensando que era fácil. Não conseguiu. A batida que João criou é a síntese do samba e a sua reinvenção. A utilização dos baixos desaparece para dar lugar a uma mão direita que percute o ritmo, enquanto a esquerda oferece acordes dissonantes num refinado desenho harmônico.

A execução ilude o ouvinte e até o músico: ela parece simples, mas é muito complexa. A voz nem sempre se deixa guiar pelo instrumento que a acompanha. Ora está adiantada, ora atrasada, às vezes os dois se encontram. É misterioso, preciso, perfeito. É necessário entender este diálogo para que não se incorra no erro de diminuir o artista.

Os três primeiros discos na Odeon, o encontro com o saxofonista Stan Getz (em Getz/Gilberto), o LP de capa branca, que começa com uma versão inigualável de Águas de Março, e Amoroso são os melhores registros da sua arte sofisticada, retratos de um país com que sonhamos e não do Brasil que temos.

Há muitos anos, numa conversa com Caetano Veloso, pedi que falasse de Tom Jobim e João Gilberto. Ele disse que a invenção deste deflagrou uma possibilidade que o talento daquele estivera até ali esperando e que o resultado faz da gente um povo com muitas responsabilidades. Pena que tantos ainda não compreendam o som e o silêncio produzidos por João Gilberto.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *