Um laço forte e, ao mesmo tempo, frágil. A abundância e a escassez se alternam ao longo dos anos. A água traçou caminhos que ajudaram a construir a história de Campina Grande. A cidade completa, nesta sexta-feira (11), 160 anos, e a sua trajetória pode ser descrita e rememorada com o percurso das águas.
“A gente fica livre, fica à vontade, faz tudo, é muito bom, é prazeroso. Água é uma bênção, porque a gente depende da água para tudo”, diz Carmelita Travassos, comerciante em Campina Grande e moradora do bairro do Catolé. Ela viveu os períodos de racionamento, mas também os de abundância.
O Açude Epitácio Pessoa, que fica em Boqueirão e abastece mais de 20 cidades paraibanas, entre elas, Campina Grande, é o espelho que reflete se os tempos são bons ou difíceis. Atualmente, o volume do manancial é de 60%. Esse cenário era bem diferente entre os anos de 2016 e 2017, quando chegou ao volume morto.
Isnaldo Cândido, especialista em Recursos Hídricos, explica essa relação.
“A história de Campina, segundo a própria literatura, está associada à questão da água. Então, Campina Grande completa, agora em outubro, 160 anos, mas, para você ter uma ideia, o Açude Velho foi o primeiro açude que foi feito em 1830. Dois anos depois, fizeram o Açude Novo. Em 1917, fizeram o Açude de Bodocongó. Quando foi em 1922, construíram o Açude João Suassuna, em Puxinanã, para atender Campina Grande. Então a história de Campina, ela está ligada à questão das águas, que não tinha local adequado. Na década de 50, em 58, o governo Juscelino Kubitschek construiu o Açude Epitácio Pessoa, que abastece Campina Grande até hoje. Campina Grande hoje abastece quase um milhão de pessoas”, detalha.
De boqueirão, para as torneiras dos campinenses. A água do Açude Epitácio Pessoa passa por alguns pontos estratégicos de tratamento antes de chegar a Campina Grande, mas chega. Só que nem sempre foi assim.
Na Rainha da Borborema, o regime de racionamento de água foi necessário em diferentes períodos. O último aconteceu entre os anos de 2014 e 2017 e todos os bairros enfrentaram o rodízio. Na época, por ano, cerca de 570 mil habitantes foram impactados pelo racionamento, em todo o sistema integrado da cidade. A cidade foi dividida em duas zonas, para que o revezamento fosse possível. Conforme a Cagepa, a divisão ficou assim:
- Zona 1 – Acácio Figueiredo, Bodocongó, Cruzeiro, Distrito Industrial, Estação Velha, Itararé, Mirante, Jardim Paulistano, Catolé, Liberdade, Presidente Médici, Sandra Cavalcante, Ligeiro, Tambor, Três Irmãs, João Agripino, Velame, Jardim Vitória, Vila Cabral, Novo Horizonte, Novo Cruzeiro, Novo Bodocongó,Ressurreição, Dinamérica, Jardim Borborema, Jardim Verdejante, Malvinas, Quarenta, Ramadinha, João Paulo II, Sonho Meu, Chico Mendes, Alameda, Santa Cruz, Santa Rosa, Serrotão, São Januário, Conj. Universitário, Cinza, Ana Amélia, Lagoa de Dentro, Distrito de São José da Mata e Distrito de Santa Terezinha.
- Zona 2 – Alto Branco, Araxá, Bodocongó, Bairros das Nações, Centro, Pedregal, Prata, Conceição, Cuités, Jenipapo, Antas, Jardim Continental, Jardim Tavares, Juracy Palhano, Jeremias, Lauritzen, Louzeiro, Monte Santo, Centenário, Palmeira, Castelo Branco, Glória, José Pinheiro, Monte Castelo, Nova Brasília, Santo Antônio, Belo Monte, Bela Vista, São José, Bairro das Cidades, Catolé de Zé Ferreira, Catingueira e Distrito de Galante. Como também: Todas as cidades pertencentes ao Sistema Integrado de Campina Grande: Alagoa Nova, Areial, Barra de Santana, Caturité, Lagoa Seca, Matinhas, Montadas, Pocinhos, Puxinanã, Queimadas, São Sebastião de Lagoa de Roça, Galante.
“Era muito ruim nos últimos dias que era pra chegar a água. A gente via que a água tava acabando. E era um sofrimento. E agora a gente não tem mais isso. Graças a Deus. Tanto para as plantas, como para os animais domésticos, como para nós. Principalmente quem tem criança, eu tenho dois netos, né? E a gente tem que estar dando banho por causa do calor. E isso é muito bom ter água nas torneiras”, aponta a comerciante Carmelita Travassos.
Mas, para os campinenses saírem do regime de racionamento, o açude precisava, primeiro, sair do volume morto, e chegar a 8,3% da capacidade total.
De acordo com a Agência Executiva das Águas, em janeiro de 2017, a situação do Açude Epitácio Pessoa, conhecido como Açude Boqueirão, era crítica. Com capacidade máxima de 466.525.964m³, o volume era de apenas 17.343.204 m³, 4,21% do volume total. Em fevereiro de 2017, a situação era ainda pior: o açude tinha apenas 3,72% do seu volume total.
Em março de 2017, por meio da transposição, a água do Rio São Francisco chegou, fez entrada por Monteiro, no Cariri do estado, e se encontrou com as águas de Boqueirão. Não para transbordar, mas para estabilizar o açude, que estava com apenas 2,9% da capacidade total, o pior volume da história desde a fundação, na década de 50, de acordo com a Aesa.
Eu sempre digo nas minhas falas técnicas que aquela crise de 2017 talvez nós não enfrentaremos mais, porque hoje nós temos o projeto de integração de São Francisco, passando por dificuldades hídricas com rios poderosíssimos. Se nós não tivermos um planejamento adequado, as pessoas conscientes, poder público e eficiente, nós vamos passar por crise. Sempre vai ter crise em recursos hídricos, quer seja pela falta, quer seja pelo excesso. Então, eu diria hoje que a situação está mais confortável, porque Boqueirão hoje está com 57% de sua capacidade, isso dá quase 270 milhões de metros cúbicos. […] O projeto de transposição do São Francisco não é para encher o açude, é para manter a regularização
As águas do Velho Chico proporcionam segurança hídrica também para cerca de um milhão de pessoas que se beneficiaram do projeto, em 35 cidades da Paraíba e de Pernambuco.
Mas ainda havia a preocupação com a qualidade do que chegava às torneiras. De acordo com o Ranking de Saneamento do Instituto Trata Brasil, que aborda os indicadores de água e esgotos nas maiores cidades do país, Campina Grande, desde 2017, figura um cenário positivo, variando da 11ª posição à 33ª posição.
O Ranking de Saneamento aborda os indicadores de água e esgotos nas maiores cidades do país com base nos dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS). O levantamento busca mostrar quais são os desafios que o país ainda enfrenta para cumprir com os compromissos nacionais e internacionais em água tratada, coleta e tratamento de esgoto. No que tange ao tratamento de água, Campina Grande sempre aparece com os maiores percentuais, indicando, entre outras coisas, que a cidade fornece a praticamente toda a população a estrutura de acesso à água.
Mas com a crise hídrica, a Companhia de Água e Esgotos da Paraíba (Cagepa), enquanto operadora de serviços de abastecimento, enfrentou desafios.
Lucílio Vieira, gerente regional da Cagepa Borborema, explica como o órgão atuou durante o racionamento.
“Até o período mais crítico do racionamento, que foi ali no ano de 2016, 2017, a Cagepa já em 2013, 2014, verificou que o Açude Epitácio Pessoa não vinha tendo uma recarga satisfatória. Então, na realidade, o racionamento como um todo teve quatro cenários, desde um cenário que era parado apenas no final de semana até o cenário mais crítico, quando a cidade foi dividida em duas zonas, com o abastecimento para um lado, enquanto o outro ficava sem abastecimento. Há quase 10 anos, o consumo que nós tínhamos naquela época era maior do que o consumo que nós temos hoje, também sem racionamento”, explica.
Esses momentos foram documentados por Emmanuel Sousa, pesquisador e administrador, que criou um blog para contar, em texto e imagem, os detalhes da relação da Rainha da Borborema com as águas.
À medida em que a cidade crescia, se desenvolvia, consequentemente a sua população aumentava e a água se tornou um item difícil, um item escasso
Ele diz que, com a construção do Açude Velho houve uma tentativa de fazer com que a água pudesse ser oferecida para a manutenção e subsistência dos habitantes de Campina Grande. “O que foi insuficiente, porque aqui, constantemente, nós temos relatos históricos de que o nível de suas águas baixavam e houve momentos em que ele secou, de fato”, detalha Emmanuel.
Na noite do dia 25 de agosto de 2017, em Campina Grande, foi decretado o fim do racionamento de água. Um momento gravado na memória coletiva da cidade, que se fortaleceu.
Anos depois, em alguns bairros, devido à altura da localização geográfica, a dificuldade hídrica ainda é uma realidade. Mas com chegadas e partidas, a água, mesmo na ausência, sempre esteve viva nas raízes de Campina Grande. Seja na aflição de quem a procura ou na fé de quem a espera.
Maria do Socorro Ribeiro, costureira e moradora do bairro Monte de Santo, declara que, apesar das dificuldades, ainda é o melhor lugar para viver. “Ainda é problema que falta de noite, talvez falta de dia. E a gente não pode viver sem água, não, né? É muito aperreio. [Mesmo com as dificuldades], me sinto bem. Eu amo Campina Grande. Aqui é meu paraíso. É, aqui é a melhor cidade do mundo”.